Por Rogério Fernandes Lemes*
Para maiores esclarecimentos ao público
leitor apresentarei uma história, isso mesmo, história com “h” que reflete a
realidade construída sobre a concepção do bem e do mal demonstrada pelo
pensamento social brasileiro.
Conta-se que uma sociedade envolvida em
escândalos endêmicos de corrupção institucional, de atentados terroristas ao
“Estado Democrático de Direito”, de sucateamento, enfraquecimento e
desmoralização das instituições permanentes, de centenas de agentes de
segurança pública assassinados por facções criminosas todos os anos, uma
emissora de televisão de canal aberto e com ampla cobertura nacional trouxe,
para seus telespectadores e convidado no palco, uma situação/problema a partir
da escolha médica em salvar uma vida humana.
Aparentemente tratava-se de um serviço
relevante de uma concessão pública conferida a um veículo de comunicação. Mas, como
nem tudo que reluz é ouro, novamente, os brasileiros receberiam mais uma carga
ideológica de doutrinação. Utilizo aqui a palavra carga em menção ao ataque
ofensivo de um exército ao seu inimigo declarado.
Em determinado momento do programa, com o
argumento de promover o debate e a reflexão sobre o dilema apresentado na
estreia do filme “Sob Pressão”, a apresentadora Fátima Bernardes – uma
excelente profissional – conclama seus convidados a votarem na seguinte
enquete: “Quem salvar primeiro? Traficante em estado grave ou policial
levemente ferido?” Seguiu-se a dinâmica do programa e formou-se o seguinte
resultado em rede nacional: sete pessoas optaram por salvar o traficante e
apenas um jovem optou por salvar o policial. Novamente um resultado que não agradou,
principalmente, os agentes de Segurança Pública e seus familiares.
As reações foram instantâneas no Brasil.
Mensagens nas redes sociais “viralizaram” com a rapidez das reprogramações das
sinapses neurais das pessoas indignadas com a forma ardilosa que a emissora
apresentou o problema, principalmente, por tratar-se de uma clara manifestação
de indução ao erro. Outro fato que viralizou nas redes sociais foi um vídeo mostrando a hostilização do repórter Caco Barcellos, da mesma emissora da
apresentadora, e sua equipe durante um manifesto de servidores públicos.
Dois dias após acaloradas e difamatórias
manifestações subjetivas sobre a figura pública da apresentadora, quatro
policiais militares do Rio de Janeiro foram mortos na queda de um helicóptero
da Polícia Militar. Vídeos flagraram o momento da queda da aeronave e a
comemoração vibrante de um grupo de moradores da Cidade de Deus. Mas o que
havia acontecido para ser comemorado? Como celebrar a morte de seres humanos
que juraram defender a sociedade mesmo com o risco da própria vida? Celebrar a
morte de homens que deixariam esposas viúvas, filhos órfãos, familiares e
amigos destruídos? São respostas que habitam a consciência de homens e mulheres
livres, autônomos e capazes de decidir a partir de premissas verdadeiras.
Três dias após a queda do helicóptero da
PMRJ, uma notícia coloca em questionamento a concepção que o Brasil tem sobre
“Direitos Humanos”. Deflagrada a operação Ethos do Ministério Público do Estado
de São Paulo para prender pessoas envolvidas com o crime organizado e
infiltradas, pasmem, no Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe). Uma
carta interceptada por um agente penitenciário levou a Polícia Civil paulista a
descobrir a existência de uma célula criminosa denominada “sintonia dos
gravatas”; uma espécie de magistratura do crime.
Em visitas aos líderes de facções
criminosas nas penitenciárias, seus advogados recebem informações para a manutenção
da vida dessas facções. O mais chocante disso tudo é o fato de um dos presos, o
vice-presidente do Condepe, aceitar a quantia mensal de quatro mil e quinhentos
reais do crime organizado para repassar informações privilegiadas. Quatro mil e
quinhentos reais, em média, é o salário de um policial com mais de dez anos de profissão
no Brasil.
Como os advogados do crime organizado
não conseguiram infiltrar-se no Condepe cooptaram seu vice-presidente para
montar um banco de dados com nomes de servidores da Segurança Pública,
inclusive de seus familiares, para serem assassinados conforme a conveniência dos
líderes protegidos, de seus inimigos, em presídios brasileiros sustentados pelo
erário público e defendidos pelo falso dilema do programa de Fátima Bernardes. Em
nota, a emissora defendeu a apresentadora dizendo que o programa “sempre preza
pelo respeito a todos” e que tem defendido PMs.
Quando entrevistei a filósofa e
psicanalista Viviane Mosé para a 6ª edição da Revista Criticartes a ser lançada
no primeiro trimestre de 2017, elaborei questões pontuais sobre a condição de
existência do ser humano. Sabedor de que Mosé é uma estudiosa de Nietzsche,
questionei-lhe sobre o sofrimento e a solidão. Por vários momentos, suas
respostas permearam questionamentos coerentes sobre os dilemas humanos. Mas o
que é um dilema?
A lexicografia dirá tratar-se de “raciocínio
que parte de premissas contraditórias e mutuamente excludentes, mas que
paradoxalmente terminam por fundamentar uma mesma conclusão”. A escolha é
sempre o ponto alto de um dilema e, nem sempre, o resultado dessa escolha será
de acordo com aquilo que a sociedade defende como valor pétreo. Um exemplo
disso são as excludentes de ilicitudes contempladas no Código Penal Brasileiro.
No Brasil não há pena de morte chancelada pelo Estado.
Na prática, um pai que matar seu filho
bebê por não tê-lo observado atrás de seu veículo, ao sair de casa pela manhã
para trabalhar, dificilmente será condenado à prisão. Uma vez que não houve
dolo, os magistrados entendem que a dor permanente do pai pela morte do filho
já é uma condenação extrema.
Vários são os exemplos de dilemas morais
a que somos submetidos o tempo todo. No meu livro Subjetividade na
Pós-modernidade tem um artigo chamado “É correto mentir para salvar uma vida?”,
onde apresento as seis principais visões éticas que auxiliam, de fato, as
pessoas refletirem sobre os dilemas humanos. Ainda que um programa de televisão
contribua para o debate desses dilemas, a investigação e a leitura são os recursos
mais confiáveis para a formação da opinião pública.
Conclui-se este artigo afirmando-se que
o dilema moral apresentado pelo programa da Fátima Bernardes, além de
astutamente mal elaborado, induz o grande público ao erro. Isso não significa
negar a condição humana do traficante. Ele é um ser humano. Centenas, senão
milhares de ocorrências policiais no Brasil em que, após intensa troca de tiros
e resposta firme da Polícia à injusta agressão, traficantes e criminosos feridos
são socorridos aos prontos-socorros, o que faz da profissão policial um exemplo
de heróis que lidam diariamente com dilemas morais; que acreditam na Justiça
brasileira e apresentam criminosos para um julgamento justo e legal.
Os Policiais do Brasil são hostilizados
por quem juraram defender, mesmo com o risco da própria vida. Este sim é um
dilema moral tratado de forma ideológica e imoral.
* Policial Militar da PMMS; membro da Academia
Douradense de Letras; Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal da
Grande Dourados; criador da Revista Criticartes; fundador da Associação dos
Cordelistas de Mato Grosso do Sul; atua na Comunicação Social do 3º BPM em
Dourados, MS.
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