terça-feira, 22 de novembro de 2016

O dilema de Fátima Bernandes

Por Rogério Fernandes Lemes*

Para maiores esclarecimentos ao público leitor apresentarei uma história, isso mesmo, história com “h” que reflete a realidade construída sobre a concepção do bem e do mal demonstrada pelo pensamento social brasileiro.
Conta-se que uma sociedade envolvida em escândalos endêmicos de corrupção institucional, de atentados terroristas ao “Estado Democrático de Direito”, de sucateamento, enfraquecimento e desmoralização das instituições permanentes, de centenas de agentes de segurança pública assassinados por facções criminosas todos os anos, uma emissora de televisão de canal aberto e com ampla cobertura nacional trouxe, para seus telespectadores e convidado no palco, uma situação/problema a partir da escolha médica em salvar uma vida humana.
Aparentemente tratava-se de um serviço relevante de uma concessão pública conferida a um veículo de comunicação. Mas, como nem tudo que reluz é ouro, novamente, os brasileiros receberiam mais uma carga ideológica de doutrinação. Utilizo aqui a palavra carga em menção ao ataque ofensivo de um exército ao seu inimigo declarado.
Em determinado momento do programa, com o argumento de promover o debate e a reflexão sobre o dilema apresentado na estreia do filme “Sob Pressão”, a apresentadora Fátima Bernardes – uma excelente profissional – conclama seus convidados a votarem na seguinte enquete: “Quem salvar primeiro? Traficante em estado grave ou policial levemente ferido?” Seguiu-se a dinâmica do programa e formou-se o seguinte resultado em rede nacional: sete pessoas optaram por salvar o traficante e apenas um jovem optou por salvar o policial. Novamente um resultado que não agradou, principalmente, os agentes de Segurança Pública e seus familiares.
As reações foram instantâneas no Brasil. Mensagens nas redes sociais “viralizaram” com a rapidez das reprogramações das sinapses neurais das pessoas indignadas com a forma ardilosa que a emissora apresentou o problema, principalmente, por tratar-se de uma clara manifestação de indução ao erro. Outro fato que viralizou nas redes sociais foi um vídeo mostrando a hostilização do repórter Caco Barcellos, da mesma emissora da apresentadora, e sua equipe durante um manifesto de servidores públicos.
Dois dias após acaloradas e difamatórias manifestações subjetivas sobre a figura pública da apresentadora, quatro policiais militares do Rio de Janeiro foram mortos na queda de um helicóptero da Polícia Militar. Vídeos flagraram o momento da queda da aeronave e a comemoração vibrante de um grupo de moradores da Cidade de Deus. Mas o que havia acontecido para ser comemorado? Como celebrar a morte de seres humanos que juraram defender a sociedade mesmo com o risco da própria vida? Celebrar a morte de homens que deixariam esposas viúvas, filhos órfãos, familiares e amigos destruídos? São respostas que habitam a consciência de homens e mulheres livres, autônomos e capazes de decidir a partir de premissas verdadeiras.
Três dias após a queda do helicóptero da PMRJ, uma notícia coloca em questionamento a concepção que o Brasil tem sobre “Direitos Humanos”. Deflagrada a operação Ethos do Ministério Público do Estado de São Paulo para prender pessoas envolvidas com o crime organizado e infiltradas, pasmem, no Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe). Uma carta interceptada por um agente penitenciário levou a Polícia Civil paulista a descobrir a existência de uma célula criminosa denominada “sintonia dos gravatas”; uma espécie de magistratura do crime.
Em visitas aos líderes de facções criminosas nas penitenciárias, seus advogados recebem informações para a manutenção da vida dessas facções. O mais chocante disso tudo é o fato de um dos presos, o vice-presidente do Condepe, aceitar a quantia mensal de quatro mil e quinhentos reais do crime organizado para repassar informações privilegiadas. Quatro mil e quinhentos reais, em média, é o salário de um policial com mais de dez anos de profissão no Brasil.
Como os advogados do crime organizado não conseguiram infiltrar-se no Condepe cooptaram seu vice-presidente para montar um banco de dados com nomes de servidores da Segurança Pública, inclusive de seus familiares, para serem assassinados conforme a conveniência dos líderes protegidos, de seus inimigos, em presídios brasileiros sustentados pelo erário público e defendidos pelo falso dilema do programa de Fátima Bernardes. Em nota, a emissora defendeu a apresentadora dizendo que o programa “sempre preza pelo respeito a todos” e que tem defendido PMs.
Quando entrevistei a filósofa e psicanalista Viviane Mosé para a 6ª edição da Revista Criticartes a ser lançada no primeiro trimestre de 2017, elaborei questões pontuais sobre a condição de existência do ser humano. Sabedor de que Mosé é uma estudiosa de Nietzsche, questionei-lhe sobre o sofrimento e a solidão. Por vários momentos, suas respostas permearam questionamentos coerentes sobre os dilemas humanos. Mas o que é um dilema?
A lexicografia dirá tratar-se de “raciocínio que parte de premissas contraditórias e mutuamente excludentes, mas que paradoxalmente terminam por fundamentar uma mesma conclusão”. A escolha é sempre o ponto alto de um dilema e, nem sempre, o resultado dessa escolha será de acordo com aquilo que a sociedade defende como valor pétreo. Um exemplo disso são as excludentes de ilicitudes contempladas no Código Penal Brasileiro. No Brasil não há pena de morte chancelada pelo Estado.
Na prática, um pai que matar seu filho bebê por não tê-lo observado atrás de seu veículo, ao sair de casa pela manhã para trabalhar, dificilmente será condenado à prisão. Uma vez que não houve dolo, os magistrados entendem que a dor permanente do pai pela morte do filho já é uma condenação extrema.
Vários são os exemplos de dilemas morais a que somos submetidos o tempo todo. No meu livro Subjetividade na Pós-modernidade tem um artigo chamado “É correto mentir para salvar uma vida?”, onde apresento as seis principais visões éticas que auxiliam, de fato, as pessoas refletirem sobre os dilemas humanos. Ainda que um programa de televisão contribua para o debate desses dilemas, a investigação e a leitura são os recursos mais confiáveis para a formação da opinião pública.
Conclui-se este artigo afirmando-se que o dilema moral apresentado pelo programa da Fátima Bernardes, além de astutamente mal elaborado, induz o grande público ao erro. Isso não significa negar a condição humana do traficante. Ele é um ser humano. Centenas, senão milhares de ocorrências policiais no Brasil em que, após intensa troca de tiros e resposta firme da Polícia à injusta agressão, traficantes e criminosos feridos são socorridos aos prontos-socorros, o que faz da profissão policial um exemplo de heróis que lidam diariamente com dilemas morais; que acreditam na Justiça brasileira e apresentam criminosos para um julgamento justo e legal.
Os Policiais do Brasil são hostilizados por quem juraram defender, mesmo com o risco da própria vida. Este sim é um dilema moral tratado de forma ideológica e imoral.

* Policial Militar da PMMS; membro da Academia Douradense de Letras; Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Grande Dourados; criador da Revista Criticartes; fundador da Associação dos Cordelistas de Mato Grosso do Sul; atua na Comunicação Social do 3º BPM em Dourados, MS.

Nenhum comentário:

Postar um comentário