sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Entrevista com Davi Roballo

Por Rogério Fernandes Lemes
Foto: Arquivo pessoal.
CriticArtes: Em seu livro “Ensaios de outros escritos”, no artigo “A vida pede passagem”, você afirma que a vida não é bela e que depende de cada um de nós se esforçar para torná-la melhor. Essa negação, que é mais filosófica do que ideológica, o que tem a nos dizer além do meramente evidente?

Davi Roballo: Em uma visão racional quanto ao concreto, se torna um tanto difícil ver beleza total na vida, pois nesse aspecto reina absolutamente a indiferença da natureza. Acredito que esse belo, esse idílio estético que atribuímos a existência não passa de um embuste que nosso inconsciente nos aplica para que não percebamos, por exemplo: o horror que é a cadeia alimentar entre os seres vivos. Se a vida fosse bela e não o caos pela sobrevivência que é, os humanos não precisariam em hipótese alguma consumir partes de cadáveres de outros animais, sim, cadáveres, pois é isso que nos vendem nos açougues e posteriormente preparamos nas panelas. Se fossemos aqui enumerar outros aspectos ficaríamos a falar sem parar, entre eles, a fome e a miséria no Mundo.
Realmente minha opinião é de que cabe a nós a responsabilidade de construirmos nossa felicidade, com a consciência de que devido ao caos do mundo ela jamais poderá ser integral, mas uma felicidade fragmentada, pois em nossas relações vivemos nos chocando ao outro e esses choques trazem em si consequências que alteram nosso espírito de humor.
Quanto a beleza em si, acredito ser muito relativa, pois segundo Voltaire se pudéssemos perguntar a um sapo o que é a beleza, ele responderia: é a sapa.

CriticArtes: Fale um pouco sobre as “influências exteriores” que governam o mundo e que, segundo suas afirmações, fundamentam-se na falsidade, na incoerência e em uma injustiça transvestida de justiça. Podemos encontrar algo de bom neste mundo físico segundo a perspectiva roballiana?

Davi Roballo: A problemática toda referente às influências exteriores, decorre do fato de estarmos destituídos de nós mesmos, há muito perdemos o controle de nossas ações, pois a grande maioria de nossas escolhas e decisões está calcada em um status quo pré-programado, isto é, somos totalmente influenciados pela moda, pela indústria cultural, pela mídia e pelo desvirtuamento dos valores, éticos, morais, intelectuais e religiosos. 
Nossas relações sociais, profissionais e etc. vivem imersas nos lodos da ambição, do egoísmo, da vaidade e outras feras que habitam o homem. Não fosse isso, a justiça, por exemplo, seria equânime e igual a todos, no entanto, sabemos que não é bem assim. As instituições e as leis são perfeitas, o problema está no homem imperfeito e corrompível que as opera. 
Há muita coisa boa no mundo sim, existem pessoas que não se deixaram comprometer por completo pelas novas tendências de o Ego triunfar sobre as decisões e escolhas. Essas pessoas conseguem viver na simplicidade sem o supérfluo, amando e respeitando o outro.

CriticArtes: Você diz que é preferível adaptarmos a verdade e falarmos dela com sinceridade, justamente para não destruirmos as relações sociais. Falarmos meias verdades não cairia por terra a busca do ente pelo “sê tu mesmo”?

Davi Roballo: Para justificar meu pensamento posso sugestionar que o leitor passe uma semana falando a verdade pura, sem rodeios, sem máscaras, somente a verdade, o que pensa e o que vê sobre os cônjuges, os filhos, os colegas, patrões, vizinhos e depois me diga como ficou seus relacionamentos sem adaptar a verdade.
Quanto a busca do ente pelo “sê tu mesmo”, como ficou evidente em texto que trato disso em “Ensaios e outros escritos”, minha opinião é de que isso é impossível, tanto da forma genética, quanto moral, ética e intelectual, pois para isso teríamos de ser um ser único, tudo o que não somos, pois somos sujeitos compostos de experiências alheias. Para sermos, dependemos de nossos pais e antepassados de quem herdamos segundo Vigotski a cultura e as tradições. Não bastasse isso, na vida vamos somando e doando conhecimentos, em uma troca que nos torna sujeitos multifacetados. Portanto é impossível alcançar a independência total e exclusiva do ser. Ele esta fisgado aos valores, morais, históricos e éticos da sociedade da qual ele emerge para a vida. No entanto, essa busca é uma das utopias que nos mantém nos trilhos da vida, é inalcançável, mas apontam para algum lugar, nos faz caminhar.
Quanto a verdade, se formos expô-la nua e crua em nossas relações em pouco tempo seremos silenciosamente banidos dos redutos sociais.

CriticArtes: No texto Confinamento sobre as metáforas da fazenda, em especial sobre as “caminhadas”, que significam o estudo contínuo, imparcial e desapaixonado. O que isso significa na vida de um escritor?

Davi Roballo: O escritor tem uma responsabilidade social muito grande ao repassar conhecimentos absorvidos de outros escritores, para isso, o aprendizado é contínuo, para escrever ele terá ler, de reciclar e atualizar seus conhecimentos. Além da responsabilidade do repasse de conhecimentos, tem ainda de lutar contra seu Ego de forma a não cair na cilada de pensar e agir de forma muito aquém do que realmente ele é. A imparcialidade e a forma desapaixonada são importantes para que o escritor não crie ou defenda as aparentes verdades absolutas, mas que tenha consciência de que tudo é superável, nada é fechado, nada é absoluto.

CriticArtes: Você é recorrente a Nitzsche, Le Bon e Rubem Alves para advertir sobre a importância de optarmos por um bom livro que, assim como nosso alimento, “a leitura errada traz consequências”. O que seria uma leitura errada e onde poderíamos observar a consequência dessa indigestão na formação do cidadão crítico, autônomo e emancipado?

Davi Roballo: A nossa história está repleta de exemplos de interpretações e leituras erradas, mas podemos destacar o caso de alguns grupos islâmicos que interpretam o Alcorão a bel prazer, segundo seus interesses de domínio deixando como consequência a morte de milhares de inocentes.
Outro exemplo são os livros de cunho ideológico, que de uma forma acovardada direcionam-se a conquistar e a arrebanhar jovens e adolescentes para suas fileiras, aproveitando-se dos períodos de conflitos existenciais em que os mesmos estão vivenciando em busca de uma identidade e de uma autoafirmação. 

CriticArtes: “Não somos livres, nem mesmo em nossas mais íntimas atitudes e decisões”. Na sua concepção, isso é algo aplicável a todas as pessoas como forma de regra geral, ou o “outro”, conforme nos fala Borges estaria imune, sendo somente ele, a única possibilidade de liberdade? Em outras palavras, isso também se aplica ao escritor?

Davi Roballo: Acredito que a liberdade seja a maior de nossas utopias, estamos sempre caminhando em direção a ela, mas não a alcançaremos. Não há como sermos livres até mesmo em nossas escolhas, ou seja, queiramos ou não, nossas decisões levam a assinatura de nossos pais, professores, colegas, amigos entre outras pessoas, que nos constituíram, que trocaram de experiências conosco. Somos constituídos de outros porque não aprendemos a caminhar, falar, escrever, ler e etc. sozinhos.
Se tratando do escritor essa liberdade é ainda mais difícil, pois quanto mais ler mais constituído fica. É certo que, quanto mais experiências e conhecimentos obtivermos, menos liberdade se acerca de nós, no entanto, mais aumenta nosso desejo em obtê-la.

CriticArtes: Na percepção roballiana em “Sobre a Liberdade”, a sociedade encontra-se em uma “escravidão coletiva e inconsciente”, que a torna ávida por status e consumo. Qual sua avaliação sobre a contracultura como alternativa de liberdade?

Davi Roballo: É trocar seis por meia dúzia, o sujeito sai de uma escravidão silenciosa e sistemática para adentrar em uma escravidão ideológica, talvez ainda pior. Não há como sermos livres, a liberdade é uma utopia que nos faz caminhar. Parafraseando Mario Quintana, a utopia é como as estrelas que estão cintilantes no céu e inalcançáveis as nossas mãos, mas na época anterior a invenção da bússola apontava direções a serem seguidas pelos navegadores. Almejamos a liberdade como forma de darmos sentido a nossa própria existência.

CriticArtes: Levando em consideração sua defesa de que o “inferno são os outros”, em uma clara inspiração em Sartre e que, por esse motivo, sempre esperamos o reconhecimento das pessoas por aquilo que fazemos que, na verdade, é uma reprodução de um conjunto de eventos e forças exteriores a nós que, desde a tenra infância aprendemos, incorporamos e reproduzimos muitas vezes de forma impensada o que, de fato, alimenta a nossa alma?

Davi Roballo: Parafraseando Sartre, o inferno são os outros, porque são eles que pisoteiam, cospem e alfinetam nosso Ego. Acredito que todos nós, alguns mais, outros menos buscamos uma autoafirmação na vida, uma determinada aceitação por onde transitamos e isso decorre de uma necessidade de nos convencermos que existimos.
Para isso, passamos praticamente a vida toda buscando preencher nosso vazio na vã tentativa de obter o todo, no entanto traçamos rotas totalmente opostas, quanto mais adquirimos bens materiais e status, mais vazios ficamos. Isso decorre por não termos ainda assimilado que o nada é a soma do todo e o todo por sua vez a soma do nada.
Parece estranho, mas o vazio só é preenchido com o nada. A grande sandice está em desejar preencher o não palpável com bens materiais, pois o psiquismo, a alma, tem sede e fome de sabedoria e desapego, virtudes que segundo Osho, desaguam no nada. O que alimenta saudavelmente nossa alma, sem dúvidas é a sabedoria e a busca pelo desapego, através da moderação do Ego.


Um comentário:

  1. Bem dentro do espírito da entrevista, lembrei aqui que de tanto ler, às vezes escrevemos coisas que não temos certeza se a ideia é nossa ou lemos por aí. Quando escrevi: "Amanhece o dia, afivelo minha máscara diária..." não sei se criei ou copiei. Parabéns pelos lançamentos.

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