Por Rogério Fernandes Lemes
Sem Literatura! E agora, José?
Imagem: Arquivo pessoal. |
Criticartes: Professora Zélia Nolasco seja bem-vinda. Sou Rogério Fernandes e, em nome da Revista Criticartes, agradeço por conceder esta entrevista. Na sua concepção, qual a gênese de toda esta polêmica envolvendo a retirada da Literatura do Ensino Médio nas escolas estaduais?
Zélia Nolasco: Bem, essa polêmica já é antiga. Em anos anteriores, já ocorreu essa tentativa, mas foi suspensa. Tem-se criado um movimento para se desestabilizar todas as estruturas e um nivelamento por baixo. Tudo foi aceito, logo, ler literatura clássica e ler gibis para uma grande maioria não há diferença. Bem como o indivíduo falar o português padrão ou a norma culta e falar o português coloquial. Acredito que cada qual tem um lugar e que um jamais tomará o lugar do outro. Por isso, é imprescindível a disciplina de literatura na grade curricular. Já que a escola proporciona um ensino sistematizado e o indivíduo com certeza na escola e pela escola saberá distinguir em qual momento utilizar a língua culta ou a coloquial e saber as diferenças entre ler um gibi e ler uma obra clássica. Agora, com a exclusão da literatura o aluno fica apenas com o que já conhece que é a língua coloquial e o conhecimento de mundo restrito ao seu meio doméstico, familiar. Já que a função social da literatura contribui para a formação do homem. Com esses nivelamentos pela cultura de massa, a literatura tem sofrido uma desestabilização tanto no lugar que ocupava, quanto, em importância, a qual detinha inquestionavelmente. Além disso, aos Governos não interessam que o povo seja instruído e crítico, para eles interessa que o povo trabalhe de preferência em atividades que não lhes possibilite pensar criticamente nem reivindicar seus direitos. Infelizmente, isso é reflexo de uma política governamental que jamais teve como prioridade a educação e a formação de qualidade. Goethe já dizia: “O declínio da literatura indica o declínio de uma nação”.
Criticartes: Quais os efeitos a curto e a longo prazos dessa medida?
Zélia Nolasco: Sinceramente, espero que essa medida seja revista pelos responsáveis: SED e Governo do Estado/MS, já que essa redução em números não é muito significativa, mas, na prática, em sala de aula e para o sistema educacional o estrago será grande. Em curto prazo teremos um desequilíbrio na vida profissional e existencial dos professores de literatura e uma queda brusca na qualidade da formação intelectual dos nossos alunos. Isso porque integrar a disciplina de literatura na disciplina de língua portuguesa constitui-se em uma perda irreparável. Entra aqui também a crise nos Cursos de Licenciaturas em Letras, Pós-Graduação “Lato Sensu” e Pós-Graduação “Stricto Sensu”, Mestrado e Dourados e os ProfLetras que as nossas Instituições de Ensino Superior (IEs) ofertam há anos. Percebe-se o visível corte das humanidades por disciplinas técnicas, profissionalizantes. É um direcionamento ao ensino técnico profissionalizante, a uma formação mecanicista. Nada contra o Ensino Técnico, agora, o que não pode é o nosso aluno ficar somente com o Ensino Técnico. Sem falar que o Estado está inchado com um grande número de professores convocados e não é produtivo ter um número tão significativo de convocados na educação. A longo prazo, teremos uma piora no quadro de leitores que já é caótico, automaticamente, uma piora também na formação de indivíduos críticos e pensantes. E quem comprova isso é o relatório da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) que traz o Brasil entre os dez países com pior rendimento escolar em leitura.
Criticartes: Explique aos leitores quais os objetivos da tomada de posição da SED/MS.
Zélia Nolasco: Bem, na verdade, essa pergunta deve ser feita para a Secretaria Estadual de Educação/MS, mas como você está fazendo a mim, falo o que penso com tranquilidade. Na minha concepção creio que os principais objetivos são: redução de gastos públicos e cortes na Educação com a justificativa de que estão adequando a grade curricular do Ensino Médio à reforma nacional do Ensino Médio e que o MS é o único Estado que mantém a disciplina de literatura desmembrada da disciplina de Língua Portuguesa, argumento esse que não procede. Na verdade, a Reforma do Ensino Médio flexibiliza a oferta de disciplinas com o intuito do aluno fazer a escolha. No entanto, o que vemos é a própria SED escolher e excluir a disciplina de literatura da grade de modo arbitrário. Até porque essa Reforma não tem a necessidade de já ser implantada de imediato, a mesma foi aprovada agora dia 08 de fevereiro do corrente. É preciso propiciar discussões, estudos e debates com os professores, as IEs e os alunos para só então definir qual o melhor caminho a ser seguido. Haja vista, que teremos algumas escolas de tempo integral e outras não. Logo, deve haver diferenças de grade entre uma e outra. Está tudo muito nebuloso, sem esclarecimentos.
Criticartes: É possível um ensino de qualidade com a junção das disciplinas de Literatura e Língua Portuguesa?
Zélia Nolasco: Acredito que não. Mas, tudo depende de qual o tipo de profissional que se quer formar. Se quiser formar um jovem para que ele seja um trabalhador na área técnica, por exemplo, um técnico em eletrônica, em informática, etc., é possível que essa junção não interfira muito em seu desempenho final. Agora, se quiser formar um profissional da educação essa junção prejudica totalmente a formação desse futuro profissional. Já que o mesmo requer uma formação humanística e intelectual ampla para atender as necessidades de sua clientela e do mundo moderno, isso só é possível através da literatura que é uma fonte de conhecimento do homem e do mundo. Além disso, ou ainda, aliada a isso, o principal caminho para um ensino de qualidade é a valorização do professor. Sem isso, nada feito. E essa junção, com certeza, não valoriza nenhum dos professores, nem o de LP nem o de Literatura porque é humanamente impossível trabalhar o conteúdo das duas disciplinas com a carga horária da forma como ficou.
Criticartes: Essa medida é legal?
Zélia Nolasco: Considerando que cada Estado tem o poder de definir sua grade curricular, é legal; por outro lado, torna-se imoral, considerando que a SED implantou sem discutir com os principais interessados que são os professores, as IEs e alunos; torna-se imoral, quando a SED implanta na surdina; torna-se imoral, quando se tem professores que atuam na área com concursos realizados pelo próprio Estado há quase vinte anos e agora terão que migrar para a Língua Portuguesa; torna-se imoral, quando o Estado, ele próprio, mantém vários cursos de licenciatura que formam professores de literatura e agora retira o mercado de trabalho desses jovens profissionais; torna-se imoral, quando o Estado cria uma lei para impor a obrigatoriedade do ensino da literatura sul-mato-grossense em sala de aula, como forma de estimular a leitura de obras literárias regionais e levar o conhecimento histórico, econômico, cultural e social do MS e, agora, simplesmente, esquece tudo.
Criticartes: Qual o posicionamento das Universidades aqui no Mato Grosso do Sul?
Zélia Nolasco: Refiro-me ao posicionamento dos professores das Universidades, todos são contrários à retirada da disciplina de Literatura da grade curricular do MS. E não é difícil dizer o porquê, pois, temos uma área grande em todos os sentidos. E as Universidades ofertam Cursos de Bacharelado e Licenciatura na Área de Letras/Literatura, Cursos de Especialização Lato Sensu, Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado) e ProfLetras. Com isso, formam todo ano profissionais que atuarão na educação, em sala de aula, com a exclusão da disciplina de literatura, automaticamente, esse profissional não terá uma vaga no mercado de trabalho.
Criticartes: Qual o seu posicionamento quanto à importância da Literatura?
Zélia Nolasco: Percebo que o que está em jogo não é se a Literatura tem ou não importância, se tem ou não uma função na Grade Curricular, pois isso para a Educação já está resolvido! O que está em questão é se os Governantes a querem? É uma questão política, governamental. Falar da importância da literatura é o mesmo que falar da importância do oxigênio para a vida humana. A literatura não é pop, mas a literatura é vida, é conhecimento, é arte, é cultura, é tudo. Acredito que a exclusão da disciplina de literatura do Ensino Médio da Rede Estadual de Ensino é um retrocesso ao ensino aprendizagem dos alunos. Principalmente, em relação à formação intelectual, crítica e de conhecimento de mundo que a literatura proporciona. Se os nossos jovens leem pouco ou quase nada, agora, então, a leitura ficará realmente esquecida. Lembrando que as bibliotecas que são disponibilizadas para os alunos são verdadeiras salas de entulhos, isso quando a escola possui. Sem falar que é impossível trabalhar os conteúdos de Língua Portuguesa e os da literatura com apenas quatro aulas semanais, aliás, já era pouco somente para a LP e agora após a junção ainda retiraram uma aula. Eram cinco de LP e agora, restaram quatro para as duas disciplinas. Goethe já dizia: “O declínio da literatura indica o declínio de uma nação”. É bem isso, agora, será que temos mais no quê ou onde declinarmos? O país e os governantes estão no descrédito, falo mais, o homem está em uma crise existencial profunda.
Criticartes: Essa medida do Governo em extinguir a disciplina de Literatura sustenta-se por pesquisas científicas e técnicas, ou trata-se uma intervenção política sem levar em consideração os impactos na Educação?
Zélia Nolasco: Não, claro que não. Trata-se de uma intervenção política que não levou em consideração os impactos na Educação. Isso porque temos vários programas desenvolvidos pelo Ministério da Educação, como o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), o Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER) entre tantos outros. Programas esses que incentivam a leitura, o acesso aos livros, o acesso às bibliotecas, e simplesmente são negados e esquecidos pela SED do MS. Você acha que ao juntar as duas disciplinas com quatro aulas semanais apenas é porque estão levando em consideração os impactos na educação?
Criticartes: Esse posicionamento colocaria em descrédito a competência da SED/MS em tratar dos assuntos da Educação estadual?
Zélia Nolasco: Não sei, talvez. A SED tomou atitudes com objetivos claros e definidos só que nem sempre os objetivos dos governantes são os mesmos da população. O que é um equívoco, pois num linguajar simples, a voz do povo é a voz de Deus. É preciso responder, por exemplo, porque retirou a literatura e permaneceu Educação Física e Ensino Religioso? Ou porque não retirou Artes, Sociologia e Filosofia que foram as primeiras disciplinas a entrarem na lista de exclusão pela Reforma? Eu, particularmente, não sou favorável à retirada de nenhuma, pois a proposta é que o aluno escolha. Agora, são respostas que precisam ser dadas à população. A Reforma do Ensino Médio vai além, não é só excluir uma ou outra disciplina, pois institui a Política de Fomento à Implementação de Escola de Ensino Médio em Tempo Integral. Como se dará isso? Pois, as escolas precisam ser reestruturadas para atender essa demanda, desde a infraestrutura básica, de prédios, com refeitórios, áreas de lazer, banheiros, salas específicas para os diversos cursos técnicos que serão oferecidos, áreas de descanso, até a valorização do professor. Caso, essas questões não sejam esclarecidas pela SED, aí sim, ela cairá em um total descrédito.
Criticartes: Quais os requisitos requeridos para nomeação da pasta da Secretaria Estadual de Educação?
Zélia Nolasco: Cada administrador privilegia os seus, de acordo com os próprios interesses. Mas, acredito que em primeiro lugar deva ser o da competência técnica, aliando conhecimento na área e diplomacia. Agora, encontrar uma pessoa que reúna esses dois requisitos é bastante raro. Quando detém um, não detém o outro. No Brasil está cheio de casos assim.
Criticartes: Obrigado pela entrevista professora Zélia Nolasco. Por favor, suas considerações finais.
Zélia Nolasco: Agradeço imensamente sua disponibilidade em me ouvir e o espaço concedido. A Reforma do Ensino Médio é importante e necessária, pois todos os países que se destacam na Educação possuem um Currículo Nacional, agora, se faz necessário debater a proposta que será implantada. Se é adequada, pois não se pode negar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que embora não seja um modelo positivo é o que aí está. Não posso deixar de te dizer que estou triste, assim como, muitos Colegas, pois dedicamos uma vida aos estudos, à pesquisa e à Educação para que Administradores retirem disciplinas importantes como a Literatura da Grade Curricular sem o amplo debate. Faço votos de que consigamos chamar a atenção desses administradores para a importância da literatura e que revertam essa decisão. Obrigada.
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*Prof.ª Drª Zélia Nolasco - Professora de Literatura e Teorias Literárias na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) desde 2000. Ministra aulas na Graduação, Mestrado Acadêmico e Mestrado Profissional em Letras. Publicou as seguintes obras: Lima Barreto: Imagem e Linguagem, São Paulo: Annablume, 2005, Lima Barreto e a Literatura Comparada, ensaios. Paco Ed. 2011; A Concepção de Arte em Lima Barreto e Leon Tolstói: divergências e convergências. Campo Grande: Ed. Life, 2016. Possui Mestrado (2003) e Doutorado (2009) em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/ASSIS/SP). Exerceu a função de Coordenadora da Pós-Graduação Lato Sensu, Especialização em Letras, de 2010 a 2012, faz parte do Conselho Universitário da UEMS (COUNI) desde 2010, membro do Comitê de Pesquisa da UEMS, Área de Concentração Letras, Linguística e Artes; presidente da Comissão Docente Estruturante (CDE) do Curso de Letras/Espanhol e vice-presidente da Associação dos Docentes da Universidade de Mato Grosso do Sul (Aduems).
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