sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

O palhaço

  Revista Criticartes - Ano II, nº. 5 - 2016  
Imagem: https://afremov.com

Isloany Machado
Campo Grande, MS

Olhava o palhaço e estava convicto de que havia algo de errado ali. Seus pais sentaram-se com ele na primeira fileira do circo, de modo que pode olhar cada detalhe. Era a primeira vez que via um palhaço tão de perto, na verdade aquela figura sempre lhe causara uma espécie de medo inexplicado, daqueles que chamam fobia. Ninguém entendia como uma criança podia ter um medo assim de um palhaço, uma figura que só quer fazer rir. Sentia-se idiota por ter tanto medo. Evitava qualquer contato. Quando o carro de som passava anunciando a chegada do circo, escondia-se embaixo da cama durante horas. Seus pais insistiam em levá-lo, pois acreditavam que um homem precisa enfrentar seus medos desde sempre. Encolhia-se entre as pernas da mãe e virava o rosto diante da aparição da figura tragicômica, sentia o peito pular sob a camisa xadrez preferida dele. 
Já um pouco maior, pode sentar-se na primeira fila e olhar mais demoradamente para ele. O que sentia era algo da ordem de um vazio, uma coisa que suas palavras não conseguiam alcançar. Há pouco deixara de ser criança e ainda carregava uma dificuldade grande de pensar seus sentimentos. Muitas pessoas carregam essa dificuldade sempre. Mas por ter-se mantido firme na primeira fileira, ganhou elogios de seus familiares, que diziam ser ele um moço já. Não era mais um medo paralisante, era algo diferente, quase dó em alguns momentos. Ah, que coisa difícil de definir, achou melhor deixar pra lá. Devia ser coisa da sua cabeça. No meio do espetáculo o palhaço aproximou-se dele e ofereceu-lhe uma flor de plástico. Ao final, viu seus amigos tirando fotografias com o palhaço. Recusou-se ao convite de um deles.
Remexendo nas suas coisas de infância encontrou a flor de plástico, empoeirada, e imediatamente a imagem do palhaço ocupou sua memória. Nunca entendera, por exemplo, por que havia uma lágrima num rosto pálido cuja boca era marcadamente feliz. Como vira de muito perto, pode notar que o riso era desenhado, não era dele. Por que mentia? Havia um par de sobrancelhas muito arqueadas dando a impressão de olhos que a tudo viam o tempo todo. No meio da face um nariz vermelho tão grande que provavelmente o impediam de ver qualquer coisa que estivesse debaixo de si. Tampouco podia compreender o fato daquele sujeito usar roupas e sapatos muito maiores do que os seus pés, sendo que sempre tropeçava neles e caía. 
Remexendo nas memórias pode entender o medo inicial e o posterior vazio que sentia ao ver o palhaço. Agora que já era homem feito, podia contar com as palavras em vários momentos, não em todos, infelizmente. Entendeu que o palhaço era uma caricatura, um exagero do humano. A lágrima em paradoxo com o riso desenhado no rosto denotava que a felicidade é um estado inconstante, paradoxal, flutuante, mas que muitos precisam colocá-lo como permanência. É preciso olhar de perto para notar que um sorriso pode ser um belo disfarce, mas que a verdade nunca se diz toda, sempre há um resto não dito. Era pra denunciar isso a mascarada dele. Sobrancelhas arqueadas para alguém que vê longe e muito, talvez até mais do que gostaria. Um nariz grande para dizer que muitos homens, apesar da impressão de que tudo veem, às vezes não enxergam o que está embaixo do próprio nariz. Por fim, as roupas e sapatos grandes denunciavam que o homem sempre quer muito mais do que precisa, ou ainda, quer sempre o que não precisa. Mas é nisso que ele sempre tropeça e cai. Todo este conjunto causava riso nas crianças e nos adultos, mas não causava nele. Aquelas pessoas riam do palhaço, sem saber que riam de si mesmas. Ele não ria. Algumas outras pessoas provavelmente também não riam. Sentia algo diferente e agora sabia que era pena. 
Olhou novamente para a flor de plástico. Uma lágrima correu em seu rosto. Mirou o espelho que estava a dois metros de si e imediatamente deixou escapar um sorriso, pois agora não tinha mais medo. Compreendeu perfeitamente que uma lágrima e um sorriso podem coexistir, pois das incoerências se constitui o homem.

  Revista Criticartes - Ano II, nº. 5 - 2016  

Um comentário:

  1. Parabéns Isloany. Todos as crianças tem medo dos palhaços e a gente insiste que ê engraçado

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