quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

“Linda, uma história horrível”, de Caio Fernando Abreu: a figurativização da AIDS e os temas exílio e decadência

Silvana do Carmo Seffrin
Curitiba, PR, Brasil
@: sseffrin@hotmail.com

RESUMO
Este estudo analisa, no conto “Linda, uma história horrível”, de Caio Fernando Abreu (Os dragões não conhecem o paraíso, 1988), além da aids como tema de ficção, o exílio ou autoexílio - metáfora dos sujeitos modernos, deslocados por excelência - e a consequente decadência ou desencanto que caracterizam seus personagens. Considerado o “fotógrafo da fragmentação contemporânea”, o escritor registrou as vivências das gerações 70, 80 e 90, compondo um panorama cultural de seu tempo.
Palavras-chave: Exílio ou autoexílio. Decadência. Aids.

ABSTRACT
This study analyzes, in the tale “Linda, uma história horrível”, by Caio Fernando Abreu (Os dragões não conhecem o paraíso, 1988), besides AIDS as fiction theme, exile or self-exile - metaphor of modern people, displaced by excellence - and the consequent decline or disenchantment of his characters. Considered the “photographer of contemporary fragmentation”, Caio recorded the experiences of the seventies, eighties and nineties’ generations, composing a cultural panorama of his era. 
Keywords: Exile or self-exile. Decadence. AIDS.

Caio Fernando Abreu foi um escritor profícuo, que escreveu muito e se aventurou com êxito em vários gêneros literários: conto, romance, teatro, poesia, crônica. No panorama da literatura brasileira, figura entre os nossos maiores contistas do século XX. Escritor da paixão, como o chamou Lygia Fagundes Telles, ou poeta da prosa, segundo Fabrício Carpinejar, dele se ressalta a capacidade de transmitir sinceridade ao texto. Luís Augusto Fischer, seu conterrâneo e contemporâneo, diz que, para Caio, a literatura devia ter a mesma força da vida:
Pois a vida não tem o poder de derrubar as melhores intenções, traindo esperanças ou fazendo-as brotar onde menos se espera? É, ela é bem assim; e bem assim Caio concebeu seu exercício de escrita – como uma espécie de vida intensificada, vida concentrada em palavras. Escrevia com um amplo domínio do repertório das emoções humanas, que em sua literatura comparecem no palco do texto, expondo suas dificuldades e virtudes bem ali, diante do leitor, que por isso mesmo empresta sua solidariedade ao que vai lendo. (FISCHER, 2009) (grifos meus)
Nessa antologia de contos póstuma, organizada por Fischer, há outro trecho que sintetiza muito bem esse aspecto de sua obra, da vida intensificada pela literatura:
Suas obras são repletas de cenas que ou se passaram com ele mesmo ou poderiam ter-se passado: em seus escritos, há um sentimento de levar a vida até a arte, de fazer a arte estar a serviço da vida, nunca de modo trivial, nunca pelas exterioridades, sempre pelo lado de dentro do indivíduo. Isso não foi uma qualidade exclusiva dele: em sua geração, a dos escritores que começaram a trabalhar durante os piores anos da ditadura militar inaugurada pelo Golpe de 64, foi bastante comum considerar a literatura como depoimento direto da experiência. (...) Dessa forma, a obra de Caio oferece um espetáculo de intensidade forte, caracterizado, entre outros traços, pela constante ultrapassagem entre a ficção e a verdade factual, entre o inventado e o biográfico, numa fluência que correspondia, em última análise, a um dos ideais da geração hippie, da geração 68 – fazer da vida uma arte, transformar tudo em matéria digna, fossem os ideais políticos coletivos, fossem as demandas individuais em busca da felicidade. (FISCHER, 2009, p. 124-125) (grifos meus)
Em sua ficção, há muitos artifícios textuais, como a apropriação de outras narrativas. A intertextualidade é uma marca do escritor, que, por meio de epígrafes, dedicatórias, citações diretas ou não, retomadas de textos na voz dos personagens e índices onomásticos, faz alusões ou homenagens a inúmeros autores do seu universo cultural, como Clarice Lispector, Hilda Hilst, Júlio Cortázar, Jorge Luís Borges, Adélia Prado, Doris Lessing, Herman Hesse, Fernando Pessoa e muitos outros. Essas constantes referências a outros artistas demonstram um escritor atento ao seu tempo, de ampla cultura, que teve uma vida hipnótica, encarnando a irreverência dos anos 70 e 80, segundo Carpinejar, em livro de Callegari (2008): “Traduziu em contos e novelas um estado de pureza, misto de pânico e deslumbramento, diante de suas experiências sempre radicais dentro e fora da linguagem.” 
A leitura de certos escritores foi fundamental para sua escrita. Ele vem da linhagem de Clarice Lispector (para Antonio Candido, 1989, p. 209, “ela é provavelmente a origem das tendências desestruturantes, que dissolvem o enredo na descrição e praticam esta com o gosto pelos contornos fugidios”) e de Virginia Woolf, escritoras de cunho intimista/psicológico, mas muitos outros escritores o influenciaram em vários aspectos:
O poeta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Italo Moriconi afirma que toda a literatura do gaúcho gira em torno dos “afetos”. “Mais que propriamente as paixões, são os afetos”, diz Moriconi.
Além de Moriconi, a reportagem do Cândido entrevistou outros estudiosos. Para a professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Tânia Pellegrini, Caio dialogou literariamente com dois renomados autores brasileiros.
“O mais claro diálogo (de Caio) acontece com Clarice Lispector, de quem herda o mergulho nas profundezas da subjetividade”, afirma, acrescentando que outra interlocução do escritor se dá com Graciliano Ramos e a sua meticulosa metodologia construtiva.
Ivan Pinheiro Machado, editor da L&PM, conta de que maneira conheceu o escritor e também faz uma análise da literatura de Caio: “Sua obra se caracterizava por um extremo apuro formal e temática cosmopolita, na medida em que ele foi um escritor urbano, o que não era comum na época no Brasil. Caio estava mais para o rock and roll enquanto a maioria dos autores buscava a tal ‘brasilidade’ no romance histórico ou no romance regionalista.” (Jornal Cândido, Curitiba, abr. 2016)
Nos anos 70, Caio teve alguma ligação com a literatura fantástica (principalmente em alguns minicontos), influenciado pelos grandes nomes da literatura latino-americana (Cortázar, Borges, García Márquez), em livros como Inventário do Irremediável (1970), O ovo apunhalado (1975) e Pedras de Calcutá (1977). Um dos movimentos literários mais importantes do século XX, o realismo mágico ou fantástico inscreveu definitivamente a América no mapa mundial da literatura. Fundia o universo mágico ao real, com elementos irreais misturados ao cotidiano, o que renovou o romance. Cem anos de solidão, romance de Gabriel García Márquez, escrito em um dos momentos mais conturbados da América Latina, é um grande exemplo de literatura fantástica. Como observou Schollhammer (2009), o realismo fantástico se destacou nos anos 60 internacionalmente, mas na realidade já havia começado nos anos 30 e 40. Jorge Luís Borges, em 1930, escreveu um ensaio sobre o tema (mesmo não sendo considerado um escritor propriamente fantástico, foi um precursor dessa vertente na literatura). Outro grande nome do fantástico é Allejo Carpentier (caribenho, que iniciou uma literatura dita real-maravilhoso, identificada posteriormente como fantástica). Segundo Candido (1989), a literatura fantástica no Brasil começou com Murilo Rubião nos anos 40 (O ex-mágico da taberna minhota, 1947), mas só se consolidou nos 70:
Com segurança meticulosa e absoluta parcialidade pelo gênero (pois nada escreve fora dele), Murilo Rubião elaborou os seus contos absurdos num momento de predomínio do realismo social, propondo um caminho que poucos identificaram e só mais tarde outros seguiram. Na meia penumbra ficou ele até a reedição modificada e aumentada daquele livro em 1966 (Os dragões e outros contos). Já então a voga de Borges e o começo da de Cortázar, logo seguida pela divulgação no Brasil de livros como Cien anos de soledad, de Garcia Márquez, fizeram a crítica e os leitores atentarem para este discreto precursor local, que todavia precisou esperar os anos 70 para atingir plenamente o público e ver reconhecida a sua importância. Entrementes a ficção tinha-se transformado e, de exceção, ele passava quase a uma alta regra. (CANDIDO, 1989, p. 207-208) (grifos meus)
Já nos anos 80, com o livro de contos Morangos mofados (1982), Caio Fernando Abreu adota um certo experimentalismo formal, como bem observa Rocha (2014):
Sua narrativa também revela um autor com extrema habilidade de transitar entre o erudito e o popular. Em seus contos e crônicas, ele emprega uma linguagem performática intercalada por referências que transformam seu texto em uma espécie de iconografia da Pop Art. Assim como os quadros da Pop Art, repletos de imagens da Coca-Cola, cigarro, pasta de dente ou latas de conserva, o discurso literário em Abreu é pincelado por várias referências simbólicas ao consumismo moderno, bem como ao cinema, à música e ao culto das stars. Este traço do escritor exerce uma grande força atrativa sobre o leitor contemporâneo. (grifos meus)
Schollhammer (2009, p. 26-27) inclui Caio na família dos grandes contistas urbanos de linha mais psicológica:
Com a abertura política, e durante o processo de retorno à democracia, surge uma escrita mais psicológica que configura uma subjetividade em crise, como ocorre, por exemplo, em Zero, de Ignacio de Loyola Brandão, de 1974, em Reflexos do baile, de Antonio Callado, de 1976, e no Cabeça de papel, de 1977, do jornalista Paulo Francis. Nesse mesmo impulso, o lastro subjetivo se aprofunda nos contos de Caio Femando Abreu, em Morangos mofados, de 1982, por intermédio de situações cotidianas em que questões de sexualidade e de opção de vida vêm absorver as resistências contra a violência de um sistema autoritário. (grifos meus)
Seu livro Triângulo das águas (1983) é composto por três novelas (ou contos longos), que ele designou “noturnos”, e onde se constata também algum experimentalismo formal, além de proximidades do texto escrito com a música em muitos pontos. A primeira novela, por exemplo, que ele define como uma “possível coreografia verbal para Köln Concert, de Keith Jarret”, é dividida em 12 vozes narrativas intercaladas por fragmentos de uma 13a voz, estrutura muito semelhante à do romance As ondas, de Virginia Woolf. O livro todo é composto com base nos signos astrológicos do elemento água (câncer, escorpião e peixes), o que dá origem ao título. No fim dos anos 80, são lançados ainda a antologia de contos já publicados Mel & Girassóis (1988) e o inédito Os dragões não conhecem o paraíso (1988). 
Nos anos 90, Caio reedita alguns livros anteriores revistos, sai o romance tipicamente urbano Onde andará Dulce Veiga? (1990), a antologia Ovelhas negras (1995, reunião de textos inéditos das mais diversas épocas) e o belíssimo Pequenas epifanias (1996, coletânea de crônicas de jornais). Os últimos textos da década de 90, antes de sua morte, nos dão indícios de algumas novas escolhas: uma retomada das narrativas mais lineares, com elementos memorialísticos, e certo vago resgate de suas raízes, nos temas e na linguagem.
Assim, podemos perceber que sua trajetória literária nas três décadas tem momentos até distintos. É um escritor bastante múltiplo, inclassificável, talvez único na forma como escrevia e que o consagrou como contista.
Para ilustrar o lado memorialístico e de volta às raízes, podemos ficar com apenas dois parágrafos do primeiro capítulo do romance que Caio pensou em escrever sobre o Passo da Guanxuma, onde se pode perceber até na linguagem a retomada de falares e vivências do Rio Grande do Sul e também sua veia humorística:
Essa, claro, é a estrada preferida da bagaceirada do Passo. Nas noites de verão dizem que a soldadesca, os rapazes e até senhores de família, médicos e vereadores costumam arrebanhar o chinaredo das pensões de La Morocha para indescritíveis bacanais na beira dos lajeados, com muita costela gorda, coração de galinha no espeto, cachaça, violão e cervejinha em caixa de isopor. Depois dessas noitadas a areia branca da pequena praia da sanga Caraguatatá amanhece atulhada de brasas dormidas, pontas de cigarro, restos de carne mastigada, algum coração de galinha mais fibroso, camisas-de-vênus úmidas, tampinhas de garrafa, restos de papel higiênico com placas duras e, contam em voz baixa para as crianças não ouvirem, às vezes algum sutiã ou calcinha de cor escandalosa, dessas de china rampeira, alguma cueca manchada ou sandália barata de loja de turco com a tira arrebentada. 
Ao cair da tarde, principalmente em janeiro quando as famílias direitas buscam o frescor da sanga, a tradição manda os maridos irem na frente para limparem discretamente as areias, enquanto as senhoras se fingem de distraídas e diminuem o passo, sacudindo as toalhas sobre as quais vão sentar, que Deus me livre pegar doença de rapariga, comentam baixinho entre si, mas algum guri metido sempre acha alguma coisa nas macegas. Os lajeados são muitos, a sanga Caraguatatá desdobra-se secreta e lenta entre pedras, algumas tão altas que podem ser usadas como trampolim, e para quem tiver coragem de entrar pelo mato cerrado onde, dizem, até onça tem, revela praias de águas cada vez mais cristalinas, que pouca gente viu. Numa delas, certa manhã de setembro, Dudu Pereira foi encontrado morto e nu, a cabeça espatifada por uma pedra jogada ao lado, ainda com fios de cabelo grudados, lascas de ossos e gotas cinzas de cérebro. (ABREU, 1995, p. 67)
Sintetizando, sua obra aborda os períodos da contracultura e da abertura política, é um registro da maneira de viver das gerações 70, 80 e 90. Segundo Wilson Martins, Caio Fernando Abreu é um “pintor da vida moderna” (título de Baudelaire), assim como Rubem Fonseca, Luiz Vilela e Sérgio Sant’Anna, todos grandes contistas. Assim como eles, Caio inovou no conto – na temática e na linguagem.

“Linda, uma história horrível”
Conto da maturidade do escritor, “Linda, uma história horrível” (Os dragões não conhecem o paraíso, 1988) traz a aids como tema de ficção. A narrativa também tem como temas o exílio ou autoexílio – metáfora dos sujeitos modernos, deslocados por excelência – e a consequente decadência ou desencanto que caracterizam seus personagens. O tema do exílio é caro a grande parte da literatura do século XX, marcada pelo trânsito, tanto na vida quanto na ficção, do rural para o urbano. 
O protagonista, um homem de meia idade, visita sua mãe, que mora na pequena Passo da Guanxuma, uma localidade do interior. Ele mora em São Paulo, capital. A mãe e a cadela, que se chama Linda, estão velhas e decadentes, assim como a velha casa da infância. Ele está doente e a visita deve-se ao intento de contar isso à mãe. O conto é a história desse encontro e sua impossibilidade, pois ele não acontece verdadeiramente. No retorno à casa, filho e mãe conversam sobre lembranças, pessoas próximas e seus trágicos destinos, passando ao largo do provável destino trágico do protagonista, que não é revelado justamente pela falta de diálogo aberto. Ele não consegue revelar a ela que está com aids. A doença não é nomeada, mas sugerida.

Raiz autobiográfica e abordagem dos temas 
“Linda, uma história horrível” é uma narrativa de raiz autobiográfica em muitos aspectos: o protagonista é um “exilado” (saiu de sua cidade natal, Passo da Guanxuma, uma alusão à cidade do interior onde Caio nasceu), mora em São Paulo (o que se detecta pela referência ao restaurante La Cassarole, do Largo do Arouche, e Caio morou muito tempo e por mais de uma vez em São Paulo) e está com aids (doença que Caio teve e que o levou à morte). 
A referência ao Passo da Guanxuma no texto é uma clara alusão às suas origens, pois Caio nasceu em Santiago (“que era do Boqueirão”), cidade do Rio Grande do Sul próxima à fronteira com a Argentina. Essa localidade imaginária aparece em outros textos do escritor . 
“Linda, uma história horrível” quase inaugura na ficção brasileira o tema da aids, já sugerido anteriormente em outros textos do autor. Em 1995, este conto foi incluído na antologia de The Penguin Book of International Gay Writing. Caio foi tradutor da novela Assim vivemos agora, de Susan Sontag, escrita em 1986 e publicada no Brasil em 1995, provavelmente a primeira história de ficção sobre a aids. No conto analisado, a doença não se configura propriamente como traço autobiográfico, mas como metáfora da solidão e do deslocamento do personagem. 
A dicotomia metrópole/cidade natal, recorrente em alguns textos de Caio e presente em “Linda, uma história horrível”, refere-se ao tema do exílio, ou autoexílio, que o personagem experimenta, metáfora do sujeito desenraizado, deslocado, desajustado. 
O desencanto, o irremediável, a decadência, marcas indeléveis de sua obra, aparecem em outros contos e nos dois romances que publicou. Dessa forma, também estão presentes neste conto.

O tema da aids no conto e na obra de Caio Fernando Abreu 
Embora, inadvertidamente, se possa pensar que Caio pela primeira vez tratou da aids nesse conto de 1988, podemos verificar que o tema já lhe era caro há tempos, desde o ano zero da aids no Brasil. 
Mendes (1998, p. 218) elenca textos de várias épocas em que Caio figurativizou o tema:
Considerado pelo crítico Marcelo Secron Bessa como o escritor brasileiro que por mais vezes figurativizou a aids, Caio Fernando Abreu incluiu-a em diversos textos seus, que vão de “Pela noite”, uma das três novelas do livro Triângulo das águas (1983), a certos contos de Os dragões não conhecem o paraíso (1988) e Ovelhas negras (1995), além de diversas crônicas jornalísticas e do romance Onde andará Dulce Veiga? (1990), onde ocorre “uma história de amor entre dois contaminados” (ABREU, 1995a, p. 5). Na peça teatral Zona contaminada (1982), que “não por acaso” foi escrita no “ano zero da proliferação da aids no Brasil” (CASTELLO, 1994, p. 3), uma personagem chama a atenção para o fato de outra ter “a Peste” embora a doença esteja “em seus estágios iniciais” (ABREU, 1997, p. 66). Outro texto escrito para o teatro, O homem e a mancha (1994), é uma “livre releitura do Dom Quixote, de Miguel de Cervantes” (ABREU, 1997, p. 95), no qual a mancha funciona como “uma metáfora para as marcas deixadas pela aids” (FERREIRA, 1996, p. 4). No filme Romance (1988), que tem Abreu como um dos roteiristas, uma personagem morre “misteriosamente, possivelmente de aids” (EWALD FILHO, 1988, p. 13).
Conforme o mesmo autor (1998, p. 219), citando Bessa (1997, p. 78-79), a aids surgiu (como menção) na literatura brasileira na novela “Pela noite”, do livro Triângulo das águas (1983), embora como tema a doença tenha sido inaugurada por Herbert Daniel em 1987, no romance Alegres e irresponsáveis abacaxis americanos. Depois disso, outros autores passaram a retratar a doença na literatura:
Na literatura brasileira a aids vem manifestando-se em autores como Silviano Santiago (Uma história de família, 1992), Bernardo Carvalho (Aberração, 1993), Alberto Guzik (Risco de vida, 1995), Jean-Claude Bernardet (A doença, uma experiência, 1996) e principalmente Caio Fernando Abreu.
A epígrafe com versos de uma canção de Cazuza sugere a temática do conto, principalmente em seu primeiro verso:
Você nunca ouviu falar em maldição,
nunca viu um milagre, 
nunca chorou sozinha num banheiro sujo, 
nem nunca quis ver a face de Deus.
(Cazuza, “Só as mães são felizes”)
Nas décadas de 80 e 90, a aids era a doença maldita, uma sina, uma sentença de morte. O milagre do segundo verso da epígrafe pode sugerir esperança (a cura?), mas ver a face de Deus sugere muitas outras coisas ainda (Uma epifania? A verdade? A morte?). O choro sozinho num banheiro sujo é a metáfora da decadência e da solidão.
A doença não é nomeada no texto, mas os indícios dela são muitos, alguns reais e outros metafóricos. As manchas estão por toda parte – tapete, roupão, parede, xícara, mãe, Linda e filho –, e são referências às manchas do Sarcoma de Kaposi, proveniente da aids. As flores roxas do roupão da mãe também sugerem as manchas roxas que o Sarcoma de Kaposi provoca na pele dos portadores do vírus.
Em certo momento do conto, depois que o protagonista desiste de contar da doença, há outra referência a ela, que a mãe evoca:
Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pelo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele:
– Saúde? Diz que tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes. (grifos meus) 
O trecho final do conto deixa claro que o protagonista está contaminado e com a doença já manifestada, pois menciona as manchas do seu peito e o nódulo inchado no pescoço:
Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada – agora, que cor? – espalhadas embaixo dos pelos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pelo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pelos. Crespos, escuros, macios. (grifos meus)
Apesar do conteúdo trágico, o extremo lirismo também caracteriza as narrativas de Caio Fernando Abreu, e esta particularmente. O linfonodo do pescoço é poeticamente retratado como uma semente: em vez de algo que sugere morte, um símbolo da vida que brota. Para se falar da morte, fala-se da vida. Afinal, a morte está na vida, compõe seu ciclo.

O exílio como metáfora dos sujeitos modernos, deslocados por excelência
O tema do exílio aparece em outros contos de Caio, como “Lixo e purpurina” (escrito em 1974 e publicado em 1995 no livro Ovelha negras) e “Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga” (também do livro Os dragões não conhecem o paraíso, de 1988), estudados por Souza (2011, p. 83), para quem há um personagem constante na obra do escritor gaúcho: “o sujeito moderno que não se insere em nenhum lugar e que está em permanente situação de desconforto e de desarticulação com o contexto em que vive”. Para a pesquisadora, o exílio “é uma experiência relevante para a história do século XX e largamente tematizada na literatura moderna, sobretudo por escritores forçados a sair de sua terra natal, tal como Caio Fernando Abreu” (p. 83).
Ginzburg (2005, p. 39) estudou os contos “Lixo e purpurina” (já mencionado) e “Os sobreviventes” (do livro Morangos mofados, de 1982), abordando as relações entre exílio, memória e história, e vai mais longe em sua análise, apontando o tema do duplo exílio: 
Por um lado o indivíduo sente-se exilado por estar fisicamente fora de sua cidade natal ou do país de origem que em grande medida constitui sua identidade. Isso porque os locais de exílio (...) não acolhem totalmente o sujeito. Ao contrário, o que permanentemente se reafirma é essa sensação de não pertencimento, além das vivências de exclusão, preconceito, violência e dificuldades materiais largamente narradas (...). Por outro, esse deslocamento parece definir esses personagens, de tal modo que não podemos afirmar que ter saído da terra natal seja a única razão para que eles se sintam permanentemente cindidos internamente. É [uma] cisão mais interna, intrínseca ao desejo, que rege a subjetividade dos personagens e transcende a questão do exílio. (grifos meus)
Borges (s/d) traz a expressão “estrangeiro de si mesmo” para falar de personagens de Caio e também do próprio escritor:
Relacionar o conceito de estrangeiro à novela “Bem longe de Marienbad”, de Caio Fernando Abreu, aparentemente, não é adentrar em uma nova discussão acadêmica. O texto está presente na obra Estranhos estrangeiros, que já tem em seu título indicações quanto à abordagem desse tema. Contudo, geralmente para tratar de tal assunto, associa-se aos personagens de Caio as concepções de Edward Said, Stuart Hall e Homi Bhabha, teóricos ligados aos Estudos Culturais e a abordagens de cunho prioritariamente histórico-sociais, o que, de certo modo, vai de encontro à natureza da narrativa em questão, que prioriza os aspectos subjetivos e psicológicos do indivíduo, estrangeiro para um novo país, mas também para si mesmo. Assim, a obra de Julia Kristeva, Estrangeiros para nós mesmos, adéqua-se a este estudo, pois, mesmo enfatizando a análise psicanalítica, não esquece a cultural para descrever características e movimentos daquele que é estrangeiro. (grifos meus)
A mesma percepção sobre Caio Fernando Abreu tem Araújo (2012):
Como seus personagens, Caio se sentia estrangeiro eterno, irremediável, um estranho estrangeiro, sem paz fora da própria terra, incapaz de viver nela. Em quase todos os contos, o escritor aborda seus temas preferidos: o estranhamento, a solidão, a dor e o sentimento de marginalização. (grifos meus)
Esse estranhamento é percebido em alguns momentos do conto, que tem cunho autobiográfico, como já comentado:
A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.

A decadência e o desencanto dos personagens
O relacionamento entre mãe e filho no conto é marcado pela decadência. O encontro entre os dois é desencontro, em muitos aspectos.
A mãe não se emociona ao recebê-lo:
Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim – de fora, de dentro da casa –, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois. (grifos meus)
Em outro momento, a falta de jeito entre os dois é flagrante:
Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:
– Me dá o fogo.
Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta. (grifos meus)
Em outro trecho, a incomunicabilidade parece se esvair, por instantes, mas volta à estaca zero. É como se a mãe, evitando ouvi-lo, evitasse a verdade que ele tem a dizer. É ela quem quebra o clima do momento e desvia os olhos, para não ouvir mais. É o clímax do conto, marcado pelo verso de Ana Cristina Cesar, referenciado pelo autor em nota de rodapé, numa citação explícita:
Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão. Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo.
Há outro momento de desencontro de toques:
– Foi boa aquela noite, não foi?
– Foi – ela concordou. – Tão boa, parecia filme. – Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela.
– O Beto gostou da senhora. Gostou tanto – ele fechou os dedos.
Assim fechados, passou-os pelos pelos do próprio braço. Umas memórias, distância. – Ele disse que a senhora era muito chique. (grifos meus)
Além dos desencontros afetivos, são muitos os sinais da decadência. A mãe está mais velha e tem “cheiro de carne velha, sozinha há anos”, a “voz tão rouca”, o adjetivo azedo é usado duas vezes para se referir a ela; as mãos “cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros”, “as costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta...”.
Outro personagem decadente é a cadela, sarnenta e quase cega, apesar do irônico nome “Linda”: “Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte.”; “velha que dá medo”.
O protagonista está doente e cansado: “– Tu estás mais magro – ela observou. Parecia preocupada. – Muito mais magro. – É o cabelo – ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. – E a barba, três dias. – Perdeu cabelo, meu filho. – É a idade. Quase quarenta anos. – Apagou o cigarro. Tossiu. – E essa tosse de cachorro? – Cigarro, mãe. Poluição.”
O ambiente da casa é decadente. O tapete é puído: “E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro – agora, que cor?”; “Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria – ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.”; “A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas.”
Até o jornal, ironicamente (ou premonitoriamente?) anuncia a ruína: “País mergulha no caos, na doença e na miséria”. A doença anunciada pelo jornal certamente não é a aids, mas o filho percebe os augúrios de um destino trágico. Quanto tempo teria de vida?
No conto, apesar de tamanha carga de estranhamento, de desencontro, de solidão e desespero, há momentos de rara beleza, de possível afeto:
Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro – cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.
Os personagens de Caio Fernando Abreu, no conjunto de sua obra, são urbanos, fragmentados, anônimos, desencantados. Ele é considerado o fotógrafo da fragmentação contemporânea.
Na orelha (não assinada) de Os dragões não conhecem o paraíso, encontramos uma síntese sobre todos os temas referidos:
(...) suas personagens movimentam-se em meio às ruínas de um mundo em plena decomposição (...) ou a simulacros de felicidade (...). São homens e mulheres exilados dentro ou fora de si próprios, em permanente estado de ameaça por todos os vírus de fim de milênio – da solidão e violência à própria aids – e permanente busca de prazer. Os dragões não conhecem o paraíso pode quem sabe ser lido como um retrato do Brasil de hoje. Um retrato interior, tirado à beira do abismo, às vezes impiedosamente realista, mas de onde também podem brotar inesperados sopros de lirismo. Estas ficções, cenários e figuras são dragões imperfeitos, como tentativas de encontrarem-se a si próprios – através do confronto com o mundo real, do autoconhecimento ou da necessidade cósmica de amor em torno da qual todas as personagens e textos giram. Concêntricos, perturbadoramente vivos em sua desamparada atualidade. (grifos meus)

REFERÊNCIAS
ABREU, Caio Fernando. Além do ponto e outros contos. Seleção e organização de Luís Augusto Fischer. São Paulo: Ática, 2009. 
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