segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Frivolidades contemporâneas: a era dos grupos de transmissões, conexões e desconexões

Por Bianca Marafiga*
Desenho: Rogério Fernandes
Quando Bauman marcou um encontro comigo foi extremamente fascinante. Fiquei tão à vontade que lhe ofereci um café e algumas “bobageiras”. Ele automaticamente puxou a cadeira, olhou em meus olhos, me enxergou de verdade! Em meio aquele olhar traçado e cheio de vida me disse: - Sente-se mocinha, agora vamos conversar! Falou do mesmo jeito que a mãe fazia quando queria me fazer entender sobre algum determinado assunto qualquer. Só que agora com doses mais profundas de filosofia. Não que a mãe não tivera, mas com Bauman parecia ser algo bem paternal.
Contei tudo a ele, sobre minhas angustias e meus caminhos. Principalmente que depois que o conheci, passei a lapidar meus pensamentos e sentimentos que antes encontravam-se em estado bruto. Agora sinto-me livre, posso descobrir o mundo através de textos sobre a subjetividade e liquidez contemporânea. Isso é algo que me fascina, principalmente por ser surreal e ao mesmo tempo tão real.
Os dias passaram-se e ele novamente veio ao meu encontro, me presenteando com um de seus livros: Tempos Líquidos. Confesso que fiquei sem graça, ainda não tenho um livro se quer publicado. Mas quis retribuir o presente, restara apenas oferecer-lhe mais algumas “bobageiras”. 
Ele aceitou e continuamos nossa conversa sobre as coisinhas do chão. Foi aí que apresentei Manoel de Barros e contei sobre as coisas simples eu que tanto amava. Mas isso fica para a próxima estória, disse a ele. Naquele momento eu estava mesmo interessada em saber mais sobre a liquidez. Tentei explicar o pouco que sabia sobre a tal “coisa liquida”, e ele até parecia satisfeito com o que ouviu.
Depois que ele regressou ao seu país, ficamos alguns dias sem falar-nos. Porém aquele conhecimento ainda estava vivo em algum lugar dentro de mim. Mas foi em uma manhã de sol, através de um “porta-voz” de Bauman (codinome inventado só em meus pensamentos) que tudo ficou ainda mais claro. As letras tomaram voz, e foi aí que pude perceber que não estava sozinha diante dos meus pensamentos “bizarros”. Tudo ficou mais claro, como uma fenda cósmica que rasga o céu. 
Agora, além dos livros de que já havia lido, conheci alguém que também compartilha dos meus pensamentos. Me senti humana, afinal essas pessoas existem! Foi neste incrível momento que realmente percebi a infinidade dentro de minha finitude. Na verdade, não sei bem como isso se chama, talvez a língua portuguesa chame de oximoro e a filosofia de subjetividade. Mas o nome pouco importa o importante mesmo é o seu significado. 
De uns tempos para cá Bauman, seu porta-voz e tantos outros só tem me ensinado a refletir ainda mais sobre a vida. Não sei se é bom ou ruim, mas às vezes acho que penso demais a ponto de doer os neurônios. Dizem que às vezes é bom parar e entrar na “caixa do nada” conforme alguns psicanalistas dizem existir. Mas acho que não a tenho, minha única caixa é a de “bobageiras”. Aliás essa eu sei bem onde está!
Já me disseram que preciso ser mais sociável, sair mais, gostar de baladinhas e até ousaram me julgar por produzir reações aversivas a certos tipos de diálogos sem sentidos como: “você viu como a fulana está gorda? E aquele tom de cabelo é horrível”. Tem gente que valoriza mais a marca de roupa que usa do que seu próprio corpo. Mas a boa notícia é que caráter ainda não tem etiqueta. Peço que não me julguem, eu até que sou legal!
Bauman, agora sabe de tudo e não que seja fofoqueira, mas contei a ele sobre o ocorrido nos últimos tempos. Inclusive que me chamaram de louca. Mas quem, não é? Vivendo neste mundo onde se tem 2856 amigos “fecebookeanos” e nem 10 reais? Fico a refletir sobre essa pressa, falta de tempo e vontade de fazer tudo. 
Contei também sobre aquele dia que me inseriram em um grupo de WhatsApp. Desses que o bom dia é decorado e que te chamam de “amiga” sem ao menos saber seu sobrenome. E para piorar a situação, caso você não retribua com outra mensagem “bonitinha” cheia de flores encantadas, certamente vão dizer que você é antissocial.
Sabem o que ele me disse? Que “vivemos o fim do futuro”. É, pode ser isso mesmo, talvez porque também destruímos o nosso presente. Mas essa resposta confesso, não saiu da minha cabeça, foi Noah Harari quem contou. 
É inegável o quanto a tecnologia tem contribuído para que as pessoas distantes possam se reaproximar, e sim eu acredito nos benefícios que ela traz. Acontece que muitas vezes todos esses recursos são ilusórios, despertam nada além de confusão mental. Outro dia pedi para os participantes do meu grupo virtual que nos encontrássemos pessoalmente para discutir a pauta de projetos futuros. A resposta foi categórica: “não pode ser por aqui”? Como assim? Quer dizer que deixamos de ser importantes a ponto de não mais haver necessidade de contato humano? Será que sermos vistos e enxergar para além de ver é só uma questão de tempo? Quer saber? Ninguém mais estará lá se uma mensagem de grupo resolver. 
A minha amizade com o generoso Bauman já estava bem sólida, então resolvi escrever a ele e contar mais das minhas indagações e reflexões. De saúde debilitada, agora não podíamos nos ver pessoalmente. Mas escrevi com riqueza de detalhes, e contei que já houve momentos em que pedi um encontro face-a-face para contar uma novidade conquistada e fui trocada pela frivolidade moderna. Por meia dúzia de “palminhas”, uma “carinha com olhos apaixonados” e “fogos que explodem confetes no ar”. Expliquei da minha tristeza em não ver a reação, o tom de voz e/ou não receber um caloroso abraço. 
Disse também sobre a dor que foi ser negada quando precisei ser ouvida das coisas da alma e talvez do coração. Na verdade, ainda não sei muito bem como chamar isso, e talvez nem tenha um nome! Mas relatei que me senti péssima em dizer a pureza de tudo que sentia, e em troca receber uma única resposta: uma “carinha triste” e frases pela metade acompanhadas de dezenas de “macacos envergonhados”. Lamentável! Foi e é terrível todos os dias.
Mas confesso, já respondi alguém com um milhão de “carinhas gargalhando” enquanto revirava os olhos com tanta bestialidade. Mas na verdade Bauman sabe, não gosto dessas carinhas e pouco faço uso delas. Deve ser porque ainda acredito no poder das palavras, porque mesmo não sendo uma escritora renomada, e sem um livro sequer publicado, gosto de me reconhecer naquilo que pouco escrevo. Finalizei a carta pedindo desculpas pela extensão do texto, mas se assim não fosse as minhas “loucuras” poderiam consumir-se de minh’alma. 
Fiquei feliz quando recebi sua resposta que dizia: “Loucos são apenas os significados não compartilhados. A loucura não é loucura quando compartilhada”. E assim continuei com minhas escritas para ele, que se tornara agora meu único e meu melhor amigo.
Desta vez meus escritos se pautaram no quanto considerava lamentável palavras digitadas, pois quase sempre são mal interpretadas. Nelas não reconhecemos quem está do outro lado, diferentemente de uma carta escrita à mão. É algo único e mágico, assim como era com ele. 
Nas cartas somos capazes de sentir as letras e suas formas. Aliás letras bonitas me encantam, me fazem viajar por entre as linhas. E mesmo que a minha não seja assim tão bonita ainda me arrisco a escrever de vez em quando.
Não deixei de contar que neste fim de ano recebi um bombardeio de felicitações sobre o ano que entraria. Confesso que fiquei feliz por perceber que tantos se lembraram da minha existência. Mas fiquei “meio” abalada porque quase ninguém ligou, ouviu minha voz ou sentiu meu coração. 
Mas pior ainda foi perceber que a grande maioria dessas pessoas devem ter criado um grupo de transmissão para que não desperdiçassem seus preciosos tempos escrevendo meia dúzia de palavras que expressassem realmente o que sentem. Sinceramente não há sentido em grupo de transmissão, pelo menos não para mim. Exceto se for uma mensagem objetiva de trabalho. Não há nada mais desagradável do que receber uma mensagem assim, te coloca em uma condição banal e simplificada. Além disso, sabemos quando se trata de uma mensagem deste tipo, mesmo quando não falamos.
Estas ferramentas nos “obriga” a responder algo que não foi pensado nós. Transformando-nos em meros números sem expressão alguma. Há ainda quem diga a famosa frase: “se de dez um responder, estou no lucro”! Podemos considerar isso como a mais completa banalização humana. E isso sim, veio da minha cabeça!
Já com pequenos calos nas mãos, continuei a carta dizendo que acredito que existam diversos fatores pós-modernos que implicam e explicam essa realidade. A falta de tempo, os acúmulos de atividades, as cobranças profissionais, objetivos e metas, por exemplo, explicam por vezes a tecnologia ter crescido de forma tão ascendente. Porém, está longe de ser eficiente. Isto porque, ela te jurou que teria todas as pessoas e informações na palma de sua mão. Ledo engano!
Concluindo deixei a seguinte pergunta: O que temos feito com tudo isso? De que forma estamos administrando nossas relações sociais? E novamente comentei sobre essa minha angustia de entender o que não se pode entender. 
Desta vez as respostas demoravam cada vez mais para chegar. Talvez por sua condição de saúde. Mas em um dia nublado lá estava um envelope, e o remetente era Zygmunt Bauman. Ao abrir segurei o papel firmemente e me esforcei para ler aquela letra tremula e linda. O conteúdo era grandioso, sensível e dizia: “As pessoas seguem a correnteza, obedecendo às suas rotinas diárias e antecipadamente resignadas diante da impossibilidade de mudá-la, e acima de tudo convencidas da irrelevância e ineficácia de suas ações ou de sua recusa em agir”. E ainda completou: “A internet e o Facebook nos tranquilizam e nos dão a sensação de proteção e abrigo, afastando o medo inconsciente de sermos abandonados”. 
Mas também me alertou para o quanto as redes sociais podem ser enganadoras. Descobri então porque algumas pessoas insistem em “jogar” as outras em uma pasta perdida ou até mesmo em sua lixeira (a fim de recuperá-la caso sua lista esteja indisponível). Ou então quando sente que seu disco rígido está cheio, a tecla “delete” entra em ação como se seres humanos fossem dados disponíveis em softwares.
Fico pensando nesses filmes de ficção cientifica, onde a robótica assume o papel de humanos talvez não esteja muito longe de acontecer. Já nos alerta Noah Harari, de que a próxima evolução da espécie humana talvez seja de homo sapiens para homo Deus. Será que nossos sentimentos também serão mecanizados?
Essas indagações estarão sempre vivas em meu coração. Embora no dia 09-01-2017, tenha recebido a triste notícia que meu melhor amigo havia falecido. Mesmo assim, sei que estará vivo em meu coração. Seus escritos jamais serão esquecidos principalmente porque dentro da minha caixa de “bobageiras” ele deixou um recado escondido dentro de um marshmallow. “Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar”.
Jamais esquecerei esta reflexão, e ainda sonho com o dia em que seres humanos possam formatar também seus corações. Retirem de vez esse vírus chamado liquidez que assola as relações. 
Espero que todos possam entender o que meu grande amigo sempre quis dizer. Que amores, amizades e sentimentos não pedem “likes”, não são tendências, são essências.
Bauman, jamais te esquecerei! (B.M)

* Bióloga
Especialista em Educação e Gestão Ambiental
Mestre em Biologia Geral/Bioprospecção

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