Por Rogério Fernandes Lemes*
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Tem quase noventa anos. Tive o privilégio de ser um neto criado com a avó, ainda que por uns três anos apenas, mas que foram suficientes para gravar em minha memória cenas indeléveis.
Cento e trinta quilômetros nos separam. Alguns segundos, se eu resolver ligar para ela. Com a tecnologia a nós disponível interagi com ela por áudios e vídeos. Até fiz uma chamada de vídeo e a vi deitada em sua cama. São coisas que nunca pensamos antes, quando juntos morávamos.
Dia desses, na verdade a última vez que nos vimos, estava radiante, feliz e alegre. Aproveitei para fazer alguns vídeos dela, que encontram-se hospedados nas nuvens. Quero acessá-los de qualquer lugar, principalmente, quando forem eles os únicos meios para matar a saudade. Embora seja uma afirmação tenho minhas dúvidas se a saudade morre.
Sempre que a visito refaço meu repertório e meu discurso. Fico mais predisposto a ouvir do que falar, assim norteamos a prosa que flui entre risos e gargalhadas. Sempre sou o protagonista de suas repetidas histórias daqueles anos em que juntos compartilhamos um teto e alimentos. Confesso que ficava irritado, antes. Agora fico irritado por ter ficado irritado. Devia ter amado mais; ter ouvido mais...
Talvez ela não perceba, mas a sufoco na tentativa de recompensar a ausência do meu avô. Nela, revivo minhas lembranças que dele tenho. Filmei ela dizendo que fiz uma armadilha para pegá-lo. Compartilhamos nossos risos.
No meu tempo tinha uma música que falava de arapuca. Também tinha uma série domingueira de um homem que, certamente, era alienígena. Ele fazia uma bomba apenas com a parafina e nitroglicerina contidas em uma simples carta de baralho. Acho que minha avó reproduz essa ideia de armadilha motivada pela música e pela série de TV.
Mas isso é irrelevante. O importante mesmo é que filmei e essas lembranças virtuais estão nas nuvens agora. Filmei seu sorriso e o som de sua risada. Filmei o fantasma de sua presença. Aprisionei-o para satisfazer meu ato mesquinho de matar saudade. Ela surpreendeu-me. Atuou em frente à câmera do aparelho de celular como se aquilo fosse um objeto de seu tempo. Estava descontraída e muito bem disposta.
Assim como a avó de Saramago, a minha também contou-me histórias de lobisomens e bruxas; de casos de família e atentados de homens bêbados. Ao contrário de Manoel de Barros, minha avó diz que são cem por cento verdadeiras.
O mundo muda e as avós também. A interpretação também muda. As histórias da minha avó, se contadas hoje, poderiam suscitar denúncias de terrorismo psicológico ou de tortura. Afinal, ficávamos aterrorizados, angustiados e, por vezes, tínhamos pesadelos terríveis. Éramos crianças felizes.
Seu corpo já cansado; sua face enrugada, um reflexo da dura lida no campo; suas mãos finíssimas de pele sensível; e seus cabelos brancos de seda são enigmáticos para mim. Algumas centenas de palavras práticas foram o suporte de sua interação a vida toda. Sabe bem o que é sofrimento e decepção. Mesmo sem nunca ter lido um livro e talvez nunca ter escrito o próprio nome, ela sabe bem o que significa amar. Ama e reclama dos filhos, dos netos... dos desafetos.
Sempre que olho o céu cheio de estrelas; a imensidão do cosmo e seus possíveis universos observáveis; ou penso na especulação do ser humano viajar no tempo... volto ao passado e lembro-me dos anos em que moramos juntos; das cenas de momentos felizes que tivemos.
Toda vez que a visito meu coração aperta e concordo com a avó de Saramago. “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer”.
*Vice-Presidente da UBE-MS
Rogério, adorei o texto. Tuas reflexões e expectativas são semelhantes às minhas, acho que somos feitos das mesmas estrelas.
ResponderExcluirRozelia Scheifler Rasia
Linfo texto.Com a sensibilidade de um neto.
ResponderExcluirOs netos amam a avó incondicionalmente, daesma forma que os amamos . Parabéns